São quatro da manhã. A cidade lá fora pulsa como uma veia inflamada na testa de um deus insone, e o sono parece uma mentira contada por gente sã que ainda acredita em finais felizes e impostos justos. Minha cabeça chia como um rádio antigo, captando estática e vozes que não fazem sentido. E o motivo dessa madrugada em colapso tem dois nomes bem conhecidos: Ed Brubaker e Sean Phillips.
Esses arquitetos do submundo emocional me entregaram um bilhete só de ida para o centro das trevas, embalado numa graphic novel de impacto. O nome da experiência: Febre Noturna, lançada no Brasil pela Editora Mino. Desde que abri as primeiras páginas, fiquei preso em um saguão de delírio, tentando compreender o que, de fato, me atingiu.
Lá fora, os fóruns e portais de quadrinhos se dividem. Alguns exaltam a obra como um "pesadelo neo-noir", "visceral e elegante", uma "obra-prima perturbadora". Outros apontam o dedo, dizendo que se trata do projeto mais raso da dupla, centrado em um protagonista patético. E eu? Eu fico no meio do fogo cruzado, lambendo a ferida, tentando entender se o veneno tem gosto doce ou amargo.
O ponto de partida é quase banal. Jonathan Webb, americano comum de meia-idade, com casa, filhos, trabalho e aquela ilusão chamada estabilidade, embarca numa viagem de negócios pela Europa. Mas a verdade é que Jonathan não dorme. Ele não encontra paz nem dentro da própria cabeça. A insônia o consome como cupins devorando uma estrutura já fragilizada.
Então o colapso acontece. Numa noite em Paris, ou talvez Lyon, ou quem sabe um canto qualquer entre a vigília e o pesadelo, Jonathan conhece Rainier. Um sujeito carismático, quase diabólico, que o leva por uma rota de festas clandestinas, crimes, adrenalina. Jonathan mergulha de cabeça nessa farsa de liberdade, assumindo uma nova identidade, tentando reescrever o próprio roteiro antes que a tinta da realidade o aprisione de vez.
É nesse ponto que Brubaker e Phillips mostram a precisão do bisturi. Não é apenas a história de uma crise existencial. É uma cirurgia brutal na masculinidade moderna, nas frustrações silenciosas e nas fantasias perigosas que muitos homens alimentam. É uma crítica feroz à fuga através da violência, da transgressão fabricada, do mito do herói de meia-idade tentando se redimir pelo caos.
Sean Phillips desenha como quem abre janelas para dentro de uma alma em ruínas. Seus quadros são sufocantes, prendendo o leitor no mesmo labirinto do protagonista. As cores de Jacob Phillips compõem um cenário febril. Amarelos doentios, verdes enjoativos, vermelhos que lembram luzes de emergência piscando em um beco sem saída. Há uma sequência de alucinação que, sem exagero, figura entre as mais impactantes já feitas em uma graphic novel. Dali em diante, você não lê. Você delira junto.
Sim, talvez a trama seja só um pretexto. Jonathan pode até ser um personagem difícil de acompanhar, alguém em quem não se deposita empatia, mas isso não importa. O final não entrega respostas fáceis. E é justamente essa ambiguidade que transforma Febre Noturna em algo memorável.
Não se trata de resolver um mistério. Trata-se de encarar o terror de existir. É Hitchcock em estado febril, num espelho que reflete aquilo que evitamos olhar: a possibilidade de largar tudo, de abandonar a razão, de seguir um impulso sombrio rumo ao desconhecido. Pode não ser o trabalho mais popular da dupla, mas é, sem dúvida, um dos mais desconcertantes.
No fim, Febre Noturna não é apenas uma HQ. É um sintoma. É uma febre que não cede. Brubaker e Phillips não criaram uma história de crime, criaram uma pergunta corrosiva: e se?
E se você desistisse da sua vida perfeita? E se sua insônia falasse mais alto do que sua razão? O que encontraria do outro lado da escuridão?
É uma obra que te rouba o sono. Que deixa marcas. Que transforma o simples ato de virar a página em uma experiência de risco. Se um quadrinho é capaz disso, então já superou muitas obras consagradas em outros meios.
Agora, se me dão licença, acho que vou tentar encarar o nascer do sol. Ou talvez apenas encarar a próxima página em branco. A madrugada ainda não acabou. E a febre continua.