São Paulo é a cidade onde o concreto respira. Uma criatura cinza que nunca dorme, cheia de vícios, virtudes e veias entupidas de gente. É feia, é linda, é ruidosa. Mas quem sabe olhar direito percebe que, entre um buzinaço e uma garoa, ela tem um canto para cada tribo. Do samba ao metal, da moda à tatuagem, da poesia marginal aos livros importados com cheiro de avião.
No fim dos anos 80, em meio ao caos controlado da maior cidade do país, surgiu uma nova trincheira cultural. Ela não foi montada por soldados, mas por nerds inquietos e leitores vorazes. Uma pequena operação quase caseira que sonhava em encurtar oceanos entre o Brasil e o coração do império nerd. Nascia ali, no centro pulsante da cidade cinza, a Devir.
Para contar essa história, conversamos com Walder Mitsiharu Yano, um dos fundadores da Devir em 1987, que esteve ao lado de Douglas Quinta Reis e Mauro Martinez dos Prazeres desde os primeiros passos. E também com Paulo R. Silva Júnior, que começou como funcionário da editora, mergulhou de cabeça no universo dos quadrinhos e RPGs, e hoje é o gerente editorial da casa. Duas visões complementares de quem viu esse império nerd nascer e se expandir por décadas.
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Mauro Martinez dos Prazeres e Deborah Fink, Walder Mitsiharu Yano e Douglas Quinta Reis |
O que você vai ler aqui não é uma entrevista comum. É um mergulho direto na torrente criativa de uma editora que soube ouvir a base, apostar alto e sobreviver onde muitos naufragaram. Uma jornada que começa com 500 dólares na mão e termina com milhares de leitores formando fila toda quinta-feira, esperando a próxima carga com cheirinho de papel novo aterrissar em solo brasileiro.
Devir: Uma História de Busca de Paixão em Forma de HQs
Era 1987. O Brasil andava como um carro desregulado, derrapando em crises econômicas, inflação galopante e uma moeda que mudava mais de nome do que personagem de novela mexicana. As bancas sofriam, os leitores choravam, e os colecionadores de quadrinhos viviam uma tragédia grega em capítulos mensais: edições canceladas no meio da trama, arcos inacabados, heróis abandonados no limbo da cronologia editorial.
Foi nesse cenário de caos programado e oportunidades improváveis que três sujeitos com a cabeça nos quadrinhos e os pés na pista de decolagem resolveram chutar o balde da escassez e abrir um túnel aéreo direto com os Estados Unidos. Walder Mitsiharu Yano, Douglas Quinta Reis e Mauro Martinez dos Prazeres fundaram a Devir com uma proposta tão simples quanto revolucionária: entregar cultura pop de primeira, quase em tempo real, direto nas mãos dos leitores brasileiros famintos por novidade.
“Identificamos aí um nicho a ser atendido, e um plano, quase que como uma ação entre amigos, para contemplar os fãs colecionadores”, disse Yano em nossa entrevista, que mais parecia uma viagem no tempo com escala em cada quinta-feira dos anos 80. “Começamos com 500 dólares semanais em revistas importadas, via aérea e lançar nas bancas brasileiras com uma defasagem de no máximo 15 dias em relação às americanas, por um dólar livro quase que a metade do que era praticado pelo mercado livreiro. Isso foi fundamental.”
Missão: Salvar o Colecionador
Na época, comprar revistas americanas no Brasil era como caçar unicôrnios no deserto. As grandes livrarias importavam em containers marítimos, economizando no frete e estocando como se fossem grãos. Isso gerava atrasos de até seis meses. Quando a edição finalmente chegava, o dólar livro era tão alto que mais parecia punição divina.
Yano e companhia foram na contramão. Literalmente. Contrataram um avião, criaram um hábito, transformaram a manhã de quinta-feira em ritual: leitores se espremiam nos balcões da Av. São João (Muito Prazer), Rua Domingos de Morais (Alex Books) e rua Lorena (Tiragem) para pegar suas doses semanais de Marvel, DC e qualquer coisa que viesse com grampo e papel colorido.
“A operação cresceu para 10 mil dólares em menos de três anos”, conta Yano. “Era uma avalanche de demanda, e a gente ainda estava criando tudo do zero. Não havia modelo de negócio.”
Quando o Recado Virou Grito
A Devir, como boa guerrilheira cultural, entendeu cedo que precisava mais do que entregar produto. Precisava criar comunidade. E foi daí que surgiu o Recado, uma espécie de panfleto-bíblia que servia como canal entre editor e leitor. Veio depois o hot-line, o update, e tudo o que cabia entre uma lombada e outra. Era uma relação direta, quase confessional.
“A distribuição era toda feita em carro próprio”, lembra Yano. “As reservas eram sem pagamento antecipado. Tinha confiança, tinha envolvimento, e tinha aquele sentimento de missão coletiva. Nós sabíamos que estávamos alimentando uma paixão. E o público sabia disso.”

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Entre o Dado e o Balão de Fala
Enquanto os quadrinhos decolavam, o RPG ainda engatinhava no Brasil. Mas os fundadores da Devir estavam com o ouvido na pista e os olhos nos dados rolando nos porões das universidades. Estudantes brasileiros que vinham dos EUA traziam caixas e mais caixas de material. A Devir apostou. Importou os maiores títulos e depois comprou os direitos em português.
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Paulo R. Silva Júnior e Frank Miller |
“Foi o maior desafio”, diz Paulo R. Silva Júnior, gerente editorial da editora. “O mercado simplesmente não existia. Mas o entusiasmo era contagiante. E a resposta do público nos confirmou que estávamos no caminho certo.”
Hoje parece simples. Mas na época, era um salto no escuro. Eles não sabiam se havia chão. Só sabiam que precisavam correr.
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Primeira edição de GURPS da Devir |
O Coração Selvagem do Colecionismo Brasileiro
Se existe uma identidade cultural no Brasil que se formou com páginas e dados rolando, a Devir ajudou a moldá-la. A comunidade de colecionadores cresceu como mato em terreno fértil, regada por personagens, sagas e campanhas que ultrapassavam o papel. “A cultura pop e o ato de colecionar se alimentam do amor por histórias e personagens”, diz Yano. “E os quadrinhos são fonte inesgotável de ambos.”
Com a chegada da internet e das redes sociais, o público mudou. Ou pelo menos, se fragmentou. “Temos leitores velhos, novos, tecnológicos, nostálgicos. Mas o que ficou foi a paixão. Isso não muda nunca”, diz Paulo R. Silva Júnior. “E é isso que tentamos sempre alimentar.”
Como Escolher o Que Publicar Quando o Mundo Está em Chamas?
A resposta é quase sempre: experiência. A Devir aposta no faro apurado de quem conhece o meio como quem conhece uma trilha no escuro. Ouve o público, negocia com o mercado, joga com variáveis incontroláveis. Mas no fim, tudo gira em torno do leitor. “Nem sempre conseguimos trazer o que todos pedem. Mas sempre tentamos. E quando dá certo, é como acertar um crítico com o dado de 20 lados”, brinca Paulo.
A editora continua firme, mesmo depois de mais de três décadas atravessando intempéries econômicas, crises do papel, revoluções tecnológicas e modas passageiras. Porque a Devir não é só uma editora. É um marco. Um bastião. Um culto de leitores que se recusam a deixar a cultura pop ser engolida pela indiferença.
Exposição dos 30 anos da Devir – 2017
