Se você é beatlemaníaco, prepare o coração. Mas também prepare a lucidez. Porque One to One: John & Yoko, o novo documentário dirigido por Kevin Macdonald (vencedor do OSCAR com outro doc: Munique, 1972: Um Dia em Setembro) e Sam Rice-Edwards, é um mergulho de cabeça num abismo de idealismo, paranoia, ego e ternura embalada a fita cassete. Não é apenas mais um produto emoldurado pela nostalgia de vinil. É uma dissecação em câmera lenta de um homem e de uma mulher.
John Lennon nunca foi só um ex-Beatle. Era uma entidade mutante. Um grito ambulante contra a caretice, a guerra e a própria sombra. Yoko Ono, por sua vez, era a rachadura na realidade que deixava passar a luz, ou a ruína, dependendo do dia e da dose. E é esse paradoxo brutal que o filme tenta capturar: os 18 meses em que Lennon e Ono viveram no Greenwich Village, como se o mundo fosse maleável, e a paz mundial estivesse ao alcance de um anúncio de página inteira no New York Times.
Com a TV ligada o tempo inteiro, o caos era o fundo sonoro da casa. Lennon dizia que gostava da televisão por ser o espelho distorcido da sociedade, o looping da cultura de massa que eles tanto combatiam quanto consumiam. No documentário, ela nunca está desligada. Comerciais, noticiários, discursos de Nixon, pedaços da guerra, as feridas de um país rachado, tudo invade o apartamento como um espectro. A televisão é a trilha oculta da paranoia e da performance, é ruído de fundo e manifesto visual.
E entre os intervalos dessa barulheira, Yoko brilha. Não só nos palcos e no caos doméstico, mas em uma cena que deveria ser obrigatória em qualquer aula de história: sua participação numa conferência feminista. Enquanto muitos ainda a rotulam de excêntrica, o documentário mostra uma mulher articulada, séria e afiada, tomando a palavra para falar de arte, corpo, poder e resistência. A câmera não está ali para julgar, está para escutar. E ali, naquele momento, Yoko deixa de ser a musa do Lennon para se tornar ela mesma: uma artista em guerra contra o silêncio.
E é nesse contexto que o filme também mergulha nas causas que moviam o casal. Lennon e Yoko estavam em guerra, mas a guerra deles era contra a Guerra. E o inimigo, para eles, tinha nome, cargo e endereço na Casa Branca. Richard Nixon paira sobre o documentário como um vilão gorgônico, sorrindo com dentes de chumbo nos telões da paranoia. O casal sabia que estava sendo vigiado, sabia que suas ligações estavam grampeadas, e mesmo assim seguiam em frente, como quem desafia o Leviatã com uma guitarra e um megafone. A Guerra do Vietnã era o grande câncer dos Estado Unidos, e Lennon queria ser sua metástase mais ruidosa. Ele usava os palcos e as aparições em programas de TV como trincheiras simbólicas, e Yoko fazia do silêncio um gesto radical. Não estavam só em busca de paz. Estavam em guerra pela paz.
Mas nenhuma causa era mais urgente ou dolorosa do que Willowbrook. A escola estatal de Staten Island, exposta em 1972 por uma reportagem de Geraldo Rivera, era um campo de horrores institucionalizado. Crianças com deficiência vivendo em condições desumanas, largadas à própria sorte em pátios úmidos e corredores vazios. Quando Lennon e Yoko viram aquilo na TV, claro, sempre na TV, decidiram agir. Organizaram o show "One to One" para levantar fundos e trazer visibilidade para o escândalo. Subiram no palco com Stevie Wonder, Roberta Flack e Elephant’s Memory como se estivessem marchando para uma guerra moral. Não era só música. Era um grito amplificado contra a apatia.
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John Lennon e Yoko Ono no palco durante o show One to One em Nova York, 1972. Foto: ABC Photo Archives/Disney General Entertainment Content/Getty Images |
O documentário foca na preparação e na realização dos shows beneficentes "One to One" de 1972, no Madison Square Garden, mas escapa dessa moldura com uma fluidez quase psicodélica. Entrelaça imagens restauradas do show com arquivos inéditos, telefonemas captados, vídeos caseiros e entrevistas recentes que expõem mais nervos do que glamour. A estrutura narrativa é um mosaico meio esquizofrênico, como convém ao espírito da época. Nada é linear, nada é só o que parece. Há verdade nas entrelinhas e mentira nas certezas.
O concerto no Madison Square Garden não é apenas uma peça de memorabilia pop. É um dos registros mais crus do pós-Beatles. Um olá para sua nova cidade com “New York City”. Lennon está nervoso, às vezes desafinado, mas visceral. Toca “Come Together” como quem exorciza um espírito. Em “Cold Turkey”, sua dor física vira ruído amplificado. Yoko entra com seus gritos experimentais em “Don’t Worry Kyoko” e aí você vê metade da plateia perplexa, outra metade em êxtase, mas a música é muito mais que um grito. É como se o palco fosse uma trincheira sonora, e cada canção uma bomba emocional lançada contra o conformismo.
E o que dizer das imagens restauradas? O trabalho técnico é impressionante. Dá pra ver o suor escorrendo no rosto de Lennon, os olhos inquietos, o corpo magro quase desaparecendo dentro de um blazer. É um homem tentando ser mais do que um símbolo. Tentando se reconectar com algo que talvez nunca tenha existido. O som é limpo, mas a emoção é suja, imperfeita, real.
Ao redor disso tudo, o documentário costura uma tapeçaria de contextos: a guerra do Vietnã, a perseguição do governo Nixon, a luta pelos direitos civis. Lennon e Yoko viram alvos fáceis. Idealistas demais para serem ignorados, mas incômodos demais para serem tolerados. O filme mostra como o casal foi espionado, vigiado e ameaçado. Mesmo assim, eles seguiram. Como quem sabe que a arte não é só catarse, é resistência.
Mas há também o lado doméstico. O apartamento em que viviam era uma cápsula criativa e afetiva. O documentário reconstrói aquele cenário com detalhes que beiram o sagrado: fitas, quadros, manuscritos, canecas. Há uma beleza silenciosa ali, um respiro no meio do caos. Yoko, muitas vezes, segura a onda enquanto Lennon flutua entre euforia e pânico. É um retrato sincero da codependência criativa, onde um alimenta a sanidade do outro com doses iguais de afeto e loucura.
Os críticos mais caretas, malas, vão reclamar. Dirão que é chapa branca. Que o filme “passa pano” pra Yoko. Que glorifica demais a militância política do casal. Besteira. Isso aqui não é um panfleto. É um documento afetivo. E como todo documento afetivo, é parcial. É emocional. É brutalmente humano.
E é aí que está sua força.
One to One não tenta explicar Lennon. Não tenta redimir Yoko. Apenas os coloca no centro do furacão, mostrando que, às vezes, amar é isso: gritar junto no vazio, esperando que alguém ouça. Eles sabiam que não mudariam o mundo com uma canção, mas sabiam que sem canção o mundo não mudaria. E é nessa espiral que o documentário nos lança.
A trilha sonora é um colosso. Não apenas pelas músicas icônicas, mas pelo modo como são entrelaçadas com a história. Quando ouvimos “Imagine”, já não é mais o hino pacifista clichê. É um lamento. Uma esperança sufocada. Um sussurro de um tempo que não volta. Yoko, por sua vez, tem seus momentos musicais que ainda incomodam os mais conservadores. E isso é ótimo. Ela é o espinho que impede a santificação. O ruído que dá textura à harmonia.
Lennon não queria ser herói. Queria ser ouvido. Queria ser amado. Queria viver. Mas o mundo exigia dele mais do que isso. Exigia coerência, postura, milagres. E ele entregou tudo o que pôde, até ser morto por alguém que se dizia fã. Ironia das ironias. O documentário não chega até esse ponto trágico. Mas a sombra da tragédia paira em cada frame. Há uma melancolia latente em cada sorriso de Lennon, como se ele soubesse que não teria tempo suficiente para terminar a frase.
Terminei do filme com o coração em frangalhos e o cérebro aceso. É isso que um bom documentário faz. Te desmonta e te reconstrói. E, para quem é beatlemaníaco como eu, ver Lennon não como mito, mas como homem, é uma experiência devastadora. Você percebe o quanto ele sangrava, o quanto ria, o quanto se perdia em si mesmo. E o quanto Yoko, com todos os seus mistérios e performances, era o único porto possível.
Recomendo? Sim. Com todas as vísceras. Mas não espere conforto. Não espere resposta. Espere Lennon e Yoko, como foram: uma faísca em meio ao breu. E se você for esperto, vai levar essa faísca com você pra vida.
Porque no fim, é como Lennon cantava: Imagine there's no countries. It isn't hard to do. Nothing to kill or die for. And no religion too. Essa utopia sussurrada ainda ecoa. Mesmo nos dias mais caóticos, essa verdade sobrevive. Em cada acorde. Em cada silêncio. Em cada imagem resgatada de uma época que, apesar de tudo, ainda grita por nós.
One to One: John & Yoko
Tempo: 1h 41m


