![]() |
![]() |
Olha eu aí |
Com essa "autoridade" devidamente estabelecida (afinal, se meu nome tá no gibi, alguma coisa eu devo entender), e com o fígado já acenando a bandeira branca e a mente navegando em águas turvas de café velho e pensamentos impublicáveis, me atirei de peito aberto nesse pandemônio de nanquim e enxofre. Sou fã, não nego. Aquele boneco do Spawn, comprado com as moedas sofridas do meu trabalho lá nos idos de 90 e tantos, ainda me julga silenciosamente da estante, um misto de acusação e irmandade macabra. Mas ser fã de verdade, meu camarada, não é ser líder de torcida paga. Fã que se preze chuta a porta da igreja e pergunta pro padre onde ele escondeu o vinho bom.
Então, aperte bem as fivelas do seu visual mais ameaçador, sirva uma lapada daquela bebida que faz o diabo pedir água, e vamos juntos fatiar essa criança do capeta, página por página desse belo (ou não tão belo assim) volume.
A CONVOCAÇÃO DOS MALDITOS: UM INÍCIO COM CHEIRO DE PÓLVORA E DESESPERO (O Começo de "Os Condenados")
Três da matina. A lua, uma bolacha de água e sal mordida por um anjo bêbado, espiava pela fresta da persiana. E eu, seu humilde e já meio insano narrador, finalmente tirei do plástico (aquele plástico que a gente ama odiar da Panini) do meu exemplar de "Os Condenados Vol. 1". A proposta? Simples e direta como um tiro de calibre 12 na cara: juntar um bando de Spawns e outros párias do Céu e do Inferno porque, veja só, o Al Simmons original aparentemente tirou férias e o mundo precisava de mais anti-heróis com problemas de controle da raiva. Ou talvez o Tio Todd só quisesse ampliar a linha de colecionáveis e justificar mais um encadernado. Detalhes, meu caro, detalhes...
Sean Lewis no comando do hospício verbal, McFarlane dando seus pitacos sombrios, e uma horda de desenhistas se revezando na arte como se estivessem disputando quem consegue desenhar mais correntes, músculos e caretas demoníacas por centímetro quadrado ao longo destas seis edições americanas. O início de "Os Condenados" é um direto no queixo. A arte de um Stephen Segovia ou Paulo Siqueira ( que participa do primeiro número) te joga num liquidificador de detalhes quase insanos, sombras que engolem a luz e respingos de... bem, fluidos questionáveis. É cru, é pesado. Por vezes, admito, é uma avalanche visual que faz seus globos oculares pedirem um spa com água benta. Mas é Spawn! Ninguém compra um gibi do Spawn esperando encontrar um piquenique no campo ilustrado por Beatrix Potter (se você não conhece, dá um google).
A trama inicial neste volume? Uma daquelas conspirações globais com russos genéricos de filme B, cientistas com parafusos a menos e um plano maligno para... erradicar os Spawns? Controlar o mercado de almas? Lançar uma nova linha de fast-food com temática infernal? Honestamente, nas primeiras páginas de "Os Condenados", o roteiro parece mais uma desculpa elaborada para justificar a carnificina. E, meu amigo, carnificina é o que não falta. É cabeça rolando, tripas voando, demônios dando chilique. Um espetáculo grotesco de ultraviolência que faria o Paul Verhoeven dos bons tempos se sentir um aprendiz de cineasta de igreja.
A dinâmica da equipe? Pense em cinco pitbulls famintos, um porco-espinho radioativo e um pastor alemão com crise de identidade trancados num elevador. É por aí. A desconfiança mútua é tão densa que você poderia cortar com uma foice enferrujada. E isso, talvez, seja o grande trunfo inicial. Quem, em sã consciência, esperaria que um amontoado de sociopatas com poderes do além e traumas do tamanho do Texas fosse sair por aí de mãos dadas cantando "We Are the World"?
O CALDEIRÃO FERVE: QUANDO A LOUCURA TENTA ENCONTRAR UM PROPÓSITO (O Miolo de "Os Condenados")
Lá pela metade do encadernado, quando seu corpo já implora por clemência e sua sanidade acena um lencinho branco em rendição, a narrativa de "Os Condenados" tenta, veja bem, tenta encontrar um eixo. Os vilões ganham um fiapo de tridimensionalidade (leia-se: continuam sendo uns fracassados, mas agora com um PowerPoint explicando suas motivações duvidosas). A "equipe", aos solavancos e rosnados, começa a desenvolver uma espécie de... tolerância armada. É quase tocante, da forma mais perturbadora possível.
O ritmo é de um ataque epilético constante. Crise após crise, confronto após confronto. Você mal tem tempo de processar o último banho de sangue antes que o próximo dilúvio de desgraça comece. Mas essa é a proposta do brinquedo, certo? É uma montanha-russa construída no inferno, sem cinto de segurança, e você está lá, berrando e rindo como um maníaco, sem ter certeza se é de terror genuíno ou de puro deleite perverso.
Jessica Priest, a She-Spawn, continua sendo um dos pontos altos neste volume. Ela é a definição ambulante de "problema esperando para acontecer", e cada vez que ela entra em cena, você sabe que alguém vai se dar muito mal. O Gunslinger também mantém sua popularidade, sendo o tipo de personagem "sem frescura" que resolve as coisas na base da bala e da ação direta. Um alívio de simplicidade brutal num mundo de demônios verborrágicos e anjos com complexo de Hamlet.
A arte continua seu samba ao longo das páginas d"Os Condenados Vol. 1". Uma página é um primor de detalhes e anatomia distorcida, a seguinte parece ter sido desenhada com um carvão em brasa durante um terremoto. Essa montanha-russa estilística se encaixa na proposta caótica e visceral do universo Spawn. Ou talvez eu só esteja tentando encontrar lógica onde só existe o mais puro e delicioso caos. Quem sou eu pra julgar?
O GOSTO AMARGO DA VERDADE: VALEU A PENA?
E agora, a questão que queima mais que o fogo do inferno, aquela que me fez sacrificar horas preciosas de sono e sanidade: "Spawn Apresenta: Os Condenados Vol. 1" presta? É a oitava maravilha do mundo em formato de gibi? Ou é só mais um monte de papel pintado pra pegar dinheiro de fã?
A verdade, meu caro companheiro de masoquismo literário, é que "Os Condenados" é... "Os Condenados". É exatamente aquilo que se espera de uma HQ do Spawn com cinco protagonistas igualmente problemáticos: um espetáculo de testosterona coagulada, uma orgia de violência gráfica e design de personagem que faz os anos 90 sorrirem para você. É o Tio Todd colocando o povo para trabalhar em sua forma mais bruta, sem as amarras do politicamente correto, mergulhado até o pescoço nas sombras e na insanidade criativa que tornaram Spawn uma lenda das bancas e das lojas de quadrinhos mundo afora.
No fim das contas, se você procura um tratado filosófico ou uma meditação sobre a condição humana... talvez devesse procurar em outro encadernado. Aqui, o que temos é caos puro, sangue fictício jorrando em alta definição e personagens que parecem ter saído direto dos pesadelos coletivos mais sombrios da cultura pop.
Eu, particularmente, não trocaria essa experiência por nada, é pura diversão. E agora, se me der licença, vou ali olhar mais uma vez para aquele boneco do Spawn na estante... e ver se ele ainda me julga.
![]() |
Leia e se divirta |